16 de setembro de 2009

Artigo: APESAR DE VOCÊ



Todo esse descaso. Toda essa falta de argumentos. Toda essa falta de vergonha. Toda essa triste cena que se desenrola a nossa frente só me dão uma certeza: realmente passou-se da hora de termos levantado nossa voz e realizado algo definitivo e efetivo. Estamos dando a cara à tapa. Parte da sociedade, desinformada ou não, procura olhar para os nossos problemas (que de fato existem), mas tampam os olhos para a realidade que urge à sua frente. Não nos enganemos: alguns tampam os olhos, mas muitos ainda têm os olhos tampados, AINDA.

Sei que tiraremos as amarras dessas pessoas ao confrontá-las com a realidade que nós, trabalhando na rede pública, assistimos todos os dias.

O que você sente ao chegar ao seu ambiente de trabalho para uma jornada de plantão e deparar-se com essa imagem dantesca, vista apenas em períodos de epidemias e guerras civis, que viraram as salas de emergências do Pronto Socorro Municipal de Cuiabá?

O que você sente ao inalar o azedume de sangue misturado à total falta de condições de salubridade que estamos submetidos, e saber que ali vai enterrar mais 12h de seu dia?

O que você sente ao encarar o rosto das pessoas que ali chegam e se amontoam em frente a você esperando liberar uma maca para serem atendidas? Que lhe olham como se VOCÊ fosse o único e exclusivo culpado por tudo isso? Ou você já procura nem mais olhar para cara dessas pessoas afim de evitar os olhares de indignação!?

O que você sente quando lhe falta o antibiótico de escolha a ser prescrito ou quando sabe que o paciente da reanimação vai morrer porque passará noites e dias ali, sem conseguir transferência a uma UTI para tratamento adequado?

E o que você sente quando os familiares dessas pessoas (para aqueles que têm a sorte de ter um familiar mais orientado que zele por elas) chegam até você com uma ordem judicial para que você arrume um jeito de transferi-lo afinal o problema dele estar ali é SEU ?

O que você sente quando o que era pra ser a sala de re-animação virou uma unidade semi-intensiva (bem “semi” mesmo), e a sala de trauma um depósito de pacientes em macas duras sem enfermaria com leitos descentes para serem transferidos?

O que você sente quando tropeça em um acompanhante debruçado sobre o seu parente, ali internado no corredor, sim INTERNADO NO CORREDOR, com número do prontuário e tudo mais, e que te olha como que dissesse: “você não vai fazer alguma coisa? Vai nos deixar ficar aqui assim?”.

O que sente quando, desviando, sim DESVIANDO desses montes de pacientes em meio ao corredor chega até a sala dos médicos, pequena, abafada e saturada por um ar condicionado que espirra sobre nós tudo que é porcaria, mas inalamos alegres porque ali dentro, perto do que está logo ali fora, é um verdadeiro oásis?

E quando ali entras, essas pessoas cá fora te olham, de suas macas duras por entre o corredor, e certamente pensam: “aonde vai esse médico ? Vai comer? Vai sentar? Vai urinar? Vai beber água enquanto eu sofro aqui?” Sim colegas, certo dia já ouvi: “olha ali aqueles médicos bebendo água enquanto está lotado aqui fora”...é, aproveite, beber água, comer, urinar, é um direito que ainda lhe resta; e dê-se por satisfeito, porque defecar é um ato de extrema coragem, afinal, quem se senta naquele vaso “limpinho” da sala dos médicos ou do quarto de repouso? Fico pensando... coitadas das mulheres, a incidência de infecção do trato urinário das colegas deve estar aumentando de tanto que elas devem estar segurando para não urinar. E nem tente correr até sua casa para fazer um desses atos libidinosos! O cadeadão e o segurança “feitor” estão lá fora à sua espreita.

Mas sei que alguns se aventuram ainda à defecar por lá, afinal, sempre ficam as provas pois a descarga não funciona. Difícil é pensar mesmo na água, talvez direito até tenhamos (AINDA) de bebê-la na nossa confortável sala dos médicos, mas se nos for contar pelas condições de higiene do bebedouro que ali usamos, o que também nos falta para degustá-la é coragem. O jeito é pagar um refrigerante para a enfermagem, aproveitar e beber uns goles. Mas o quê!!!!! “Olhe lá aqueles médicos porcarias de novo, agora tomando coca-cola” – ou vão dizer que essa frase nunca ouviram?

Será que esses lembretes trouxeram a memória de vocês algum tipo de lembrança? Será que os estudantes que aqui lerem, sim, esses mesmos estudantes que lá freqüentam sedentos por aprender e que há poucas semanas atrás tiveram seu direito de ir e vir na unidade tolhido pelo fato de alguém achar que não é justo que suas faculdades “comam o filé e não queiram roer o osso” (o filé é a excelente condição de ensino e ambiente salutar de aprendizado gentilmente “cedido” pelos gestores da secretaria municipal de saúde de Cuiabá) - sim vocês! Será que já mesmo antes de se formarem ganham uma visão deturpada da medicina e acham comum, normal trabalhar em um ambiente assim? Pois é hora de todos estarmos juntos. É hora de acabar com a falta de respeito contra nós mesmos, porque aceitar o que até hoje estivemos aceitando é desrespeitar a nós mesmos.

Mas é interessante. Há colegas médicos, na gestão, que não concordam conosco. Que não enxergam o mesmo que vemos. Que acham inclusive que quatro cirurgiões no box de emergência é muita coisa! Dois ali ou estourando três já tocam bem o serviço. É... tocam. Estranho. Há alguns anos atrás eu via por ali alguns desses mesmos, reclamando das péssimas condições. Reclamando do fluxo e dos pacientes ambulatoriais que lotavam as salas de urgência (e olha que esses tais só lá apareciam na hora do parecer) e hoje estão por cima. Cheios de razões. Cheios de ordens. Que tristeza.

Mais tristeza? Pois bem: “Vocês não tem o direito de interferir na minha gestão”, “Aqui quem manda sou eu”, “Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira”. Será que preciso dar nome aos bois? Interessante como o conceito de DIREITO se modifica quando se está de um lado diferente. E enquanto isso, o cadeadão está lá no portão do cadeião, à partir das 22h, junto do “feitor” da segurança para ficar de olho nos médicos que quiserem tentar colocar o nariz pra fora. E olhe bem! Se você for tachado de “médico fujão” será eternamente perseguido pelos bedéis do plantão administrativo. “Que pacientes no corredor que nada, o negócio é controlar freqüência e hora que esses médicos sem vergonha batem o ponto ... e cuide você heim !!!!! Ou cortamos seu mensalinho !!!!!”

É... no que nos transformamos? A CULPA É NOSSA: foi exatamente no que nos deixamos transformar. Respeito por toda uma carreira? Anos e anos de contribuição ao eficientíssimo sistema de saúde? Respeito pelos anos de estudos, residência médica, uma, duas, três (!!!!!!), pós-graduações, mestrado, doutorado???? Largue de bobeira!!!! Que respeito que nada “os médicos deviam estar é satisfeitos, nos últimos 4 anos a saúde de Cuiabá melhorou muito”.

Maquiavel é que estava certo... “o poder corrompe”.
Mas quero acreditar... APESAR DE VOCÊs AMANHÃ HÁ DE SER, OUTRO DIA.

Alberto Bicudo Salomão
http://twitter.com/alberto_bicudo

Um comentário:

Mariana Gouveia disse...

eu sinto vergonha!!Mas ainda acho que podemos fazer algo.Mudar a opinião.Eu,não sou médica,nem enfrento essas filas,nem durmo nas macas,ainda!!Minha saúde perfeita me faz recorrer à farmácia do meu bairro em busca da solução para a dor nas costas do meu marido,para a alergia que me ronda.Mas,eu tenho esperança,quem sabe,de la´no futuro,meu neto possa ter direito à saúde tão ampla e restrita que ronda a constituição.E que quando ele optar por uma profissão como essa,ele tenha o pleno direito de exercê-la com toda honra que o nome traz.Parabens pelo artigo.fantástico e expressa o quetão bem acontece diariamente!!